Psiquiatria, saúde mental e atenção psicossocial, por Cledson Sady

Cledson Sady é Diretor de Saúde Mental de Jacobina

O emérito e histórico defensor da luta antimanicomial, Dr. Paulo Amarante, psiquiatra, com doutorado em saúde coletiva, pesquisador em saúde mental e atenção psicossocial do laboratório da ENSP/FIOCRUZ, diz no seu livro “Saúde Mental e atenção psicossocial” sobre saúde mental: (…) poucos campos de atuação são tão vigorosamente complexos, plurais, intersetoriais e com tanta transversalidade de saberes. Ao contrário da psiquiatria, a saúde mental não se baseia em apenas um tipo de conhecimento, a psiquiatria, e muito menos é exercida por apenas, ou fundamentalmente, um profissional, o psiquiatra.”

Então, que papel cabe aos Centro de atenção psicossociais, modelo de assistência nascido para substituir o modelo hegemônico que comandava o modelo manicomial, centrado quase exclusivamente na psiquiatria?

Logicamente que não é apenas de diagnosticar e conter com medicação e isolar da sociedade o indivíduo com sofrimento mental, o “doente”, como se fazia no modelo hegemônico. A Lei 10216/1990 tramitou durante doze anos para ser aprovada e dar origem ao financiamento público dos Caps em todo Brasil, com apoio basicamente dos profissionais de saúde mental, familiares e usuário que queriam o fim do modelo manicomial. Mas, todos aceitaram e entenderam esse processo?

Lembro que em 2021 fui convidado pelo Conselho de Segurança de Jacobina, na sede da OAB local, para numa reunião tratarmos sobre nossos pacientes na sociedade. Na mesa estavam pessoas do conselho de segurança, eu, uma senhora promotora e o comandante da PM, cujos nomes não lembro. O público composto basicamente de pessoas da área de segurança pública e alguns familiares de usuários.

Para minha surpresa todas as perguntas diziam respeito a legislação criminal, quando eu solicitava a palavra abalizada e elegante da promotora e do coronel da PM. Nenhuma pergunta dizia respeito a atenção psicossocial, responsabilidade familiar, social ou como melhorar a forma de cuidado, mas sobre possíveis delitos ou violências promovidos ou sofridas por usuários, em tratamento ou não nos Caps II ou AD. Teve sofrimento psíquico, querendo ou não, o cidadão deveria ser abordado pelos caps e levado a “tratamento”, como se fazia no tempo dos manicômios.

Desde 2005 o protocolo de cuidados em atenção psicossocial é enviado para as forças de segurança, Ministério Público, serviços públicos de Jacobina, para evitar dúvidas muito simples, que podem ser dirimidas com rápida leitura ou consulta as equipes de saúde da família dos territórios.

Passamos por anos muito difíceis para manter a lógica antimanicomial em Jacobina, que também não foi estruturada por vontade popular ou política, mas, eminentemente ideológica, humanista. Em 2005 não tínhamos psiquiatra ou psicólogo no serviço público local, mas tínhamos muitos cidadãos com sofrimento psíquico, alguns indo e vindo constantemente de internações psiquiátricas forçadas, ou vivendo em cárcere privado na casa de familiares. Cidadãos invisíveis, sem direitos, excluídos. Famílias muito humildes carregando culpa e dor.

As demandas equivocadas continuam a chegar nos Caps por falta de mudança desse entendimento citado no início deste artigo pelo Dr. Paulo Amarante. A população nem mesmo a atual equipe de saúde, por conta do tempo de formado, lutou por esta mudança de paradigma. O foco na doença e na segurança ainda é mais evidente do que a oferta de ambiência saudável, livre e humanizada para oferta de atenção psicossocial.

Crianças e adolescentes vítimas de violência sendo encaminhadas para tratar uma suposta psicose, quando de fato ela permanece no local que causou o sofrimento. Consulta “urgente” e medicação vai resolver o problema? Usuário crônico de substância psicoativa, sem querer tratamento, com possíveis problemas orgânicos, vindo de internação sem critérios técnicos poderão ser atendidos de imediato por um psiquiatra no Caps para receber prescrição sem saber como está seu fígado ou rins? Adulto jovem em primeiro episódio psicótico, deve ser atendido fora de ambiente hospitalar e medicado sem que se tenha conhecimento da sua história de vida? Paciente estável a anos, com diagnóstico e prescrição definidas, sem qualquer queixa ou compartilhamento da equipe de saúde local, deve voltar ao psiquiatra para saber se deverá mudar a medicação?

Tudo isto pode ser compreendido no Manual do Caps (Brasil,2004), no Instrutivo técnico da RAPS (Brasil,2022), Lei 10216/2001, Lei 11343/2006 e Lei 3088/2011. Lógico, ler e estudar não garante aprendizado. Participação na construção do processo melhora a compreensão.

Quando ainda se tem o conceito de que estes cidadãos com algum sofrimento psíquico devem ser isolados da sociedade, internados em serviços de longa duração, ou serem isolados em casa, ou mesmo num serviço de atenção psicossocial, não vai existir lei ou portaria que promova mudança de olhar, pois o preconceito é bem mais forte do que a busca de construção de cidadania.

Após período de muitas dificuldades para os profissionais efetivos das equipes de atenção psicossocial de Jacobina, com todo apoio da gestora D. Valdice Castro e no final do ano de 2024 com o decisivo apoio de Dr. Leopoldo Passos para mantermos os usuários estáveis, avançamos implantando um Caps para infância e juventude em maio deste ano, ainda mantido com recursos municipais, mesmo com todo o processo de habilitação que nos cabe pronto desde a inauguração.

Começamos o caminho fundamental para que os protocolos de atenção psicossocial sejam bem compreendidos onde as pessoas moram; a oferta de cuidados nos territórios. Já oferecemos contra referência e apoio matricial, mas, agora propusemos a implantação de centros de convivência e suporte teórico aos técnicos dos territórios, especialmente aos ACS, paciente por paciente, in loco, para que aquilo que foi diagnosticado após avaliação multiprofissional seja executado em casa, no território, quebrando preconceitos e possibilitando vida com sentido e dignidade. Essa ação busca resolução e não disfarçar temporariamente uma situação.

Após vinte anos de implantação do primeiro Caps em Jacobina chegou a hora de evitarmos patologização, medicalização e marginalização da pessoa com algum sofrimento psíquico, indo de encontro aos princípios da Lei 10216, da oferta de cuidado em liberdade, com critérios técnicos, longe da lógica manicomial que ainda prevalece entre aqueles que não participaram da busca por outro modelo e estão presos a uma rotina de horror disfarçada de cuidado em “saúde”, numa “consulta de urgência”, que avalie o transtorno, mas nunca o cidadão na sua integralidade. Essa prática não é atenção psicossocial, saúde mental nem mesmo psiquiatria.

Fonte: Mais Política

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