Essa turma tem impressionado pela força em esportes com levantamento de peso; Bruna Schwenck e Alexandre Orge (atrás) e Adrian Star e Cauzinho Neto (frente) (Marina Silva/CORREIO) |
Com quantos anos um atleta começa a ser formado? A resposta para essa pergunta não é exata. Em diversas modalidades, eles surgem como promessas ainda na adolescência e até na infância, desde os esportes mais tradicionais até as modalidades menos conhecidas. E se para alguns o peso da responsabilidade começa muito cedo, para outros são os próprios pesos que levam a um aumento da responsabilidade em momento bastante precoce.
Em Salvador, há crianças que carregam até três vezes o peso do próprio corpo e chamam a atenção nas redes sociais. Praticantes de crossfit ou levantamento de peso, elas também carregam junto com as barras e alteres algumas dúvidas e contestações. As principais preocupações giram em torno das lesões, principalmente na coluna e nas articulações, e problemas relacionados ao crescimento. Afinal, uma criança ou adolescente pode se tornar um peso pesadinho sem ter qualquer tipo de prejuízo físico no futuro?
Para o médico ortopedista Marcelo Midlej, que trabalha com medicina esportiva de alta performance no Esporte Clube Vitória, sim, é possível puxar ferro desde cedo, mas lógico, sem exagero. Ele dá como exemplo os cuidados na prática adotados dentro da modalidade do crossfit, que tem um modelo de treinos só para crianças e adolescentes, o qual alivia na carga e na intensidade dos treinos. Para o profissional, o indicado para atletas nessa idade é não exceder 50 a 60 minutos de treinos diários, também se preocupando em buscar pesos e cargas compatíveis.
“Para esse público é importante não exceder cargas para evitar lesões. Existe uma região no corpo de crianças e adolescentes chamada de placa de crescimento ósseo e, quando se pega muita carga, pode ocorrer uma lesão ou fratura, o que pode afetar no crescimento. Não recomendo uma prática com muita carga e muito competitiva. O indicado é que seja uma atividade mais voltada para socialização e desenvolvimento da criança”, declarou.
Na capital, a palavra do crossfit já se espalhou com força e se tornou um dos esportes mais queridinhos da nova geração. E no meio de tanta gente crescida que pratica essa “brincadeira de adulto”, tem uma turma que leva o crossfit tão a sério que é raro de se ver. Esses pequenos atletas protagonizam cenas impressionantes, erguendo cargas que podem ser duas ou três vezes maiores que o peso do próprio corpo.
Carlos Augusto Neto, mais conhecido como Cauzinho (@cacauzinho_neto), tem só 12 anos e já é quase um veterano no box do Crossfit Oxente, na Federação. “Eu gosto muito da dinâmica do crossfit. Você faz um exercício, na sequência emenda outro e isso dá muita adrenalina”, definiu o menino quando foi questionado sobre o porquê se apaixonou pelo esporte.
Cauzinho ergue 65 kg no movimento snatch, com a barra acima da cabeça (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Ele começou há quase dois anos, quando o pai Carlos Augusto, 39, estava indo para o seu treino e recebeu uma ligação de emergência. “A babá dele teve uma urgência e precisou ir embora mais cedo. Como não tinha mais ninguém em casa, resolvi levar ele comigo para o meu treino. Lá ele sentou, observou, achou interessante e, no dia seguinte, me pediu para fazer uma aula experimental”, conta o pai. A essa época, Carlos lembra que a atividade física já era algo comum dentro de casa, quando ele incentivava o filho e montava circuitos de corrida, flexão e apoio.
Como todo iniciante, o treinador e proprietário da Oxente, Tuti Perco, 44, preparou uma aula especial para Cauzinho, voltada para o aprendizado de movimentos das barras sem peso e exercícios de ginástica. Tudo isso acompanhado de outras crianças que participavam da turma do crossfit kids, proposto pela academia.
“O crossfit kids não é voltado para competições ou trabalho de força. O foco é a coordenação motora, mobilidade e desenvolvimento cardiorrespiratório. É uma coisa natural, sem peso, que trabalhamos de forma lúdica”, explicou Tuti.
Mas algo chamou a atenção do pai, que logo acionou o treinador para observar o desempenho do garoto. “Vi que ele estava muito à frente das outras crianças na aula. Chamei Tuti e pedi para que ele visse Cauzinho em uma aula. Logo que ele viu, entendeu que não tinha condições e juntou ele com a turma dos adultos. Primeiro com a condição de que eu estivesse com ele não só no mesmo treino, mas para tomar conta e evitar acidentes”, lembra Carlos Augusto. Aos poucos, o pai foi mantendo a participação de Cauzinho nas aulas e, em algumas semanas, viu o filho praticar movimentos que nem mesmo ele fazia em suas aulas.
“Ele evoluiu tanto que com três meses de cross foi convidado pela Federação Baiana de Levantamento de Peso Olímpico (LPO) para fazer uma apresentação em um campeonato. Isso depois que publiquei um vídeo dele nas redes sociais”. Hoje, quase dois anos depois do começo no crossfit, as redes sociais de Cauzinho somam 288 mil seguidores.
Pesando 38 kg, Cauzinho já impressiona por levantar quase 50 kg no movimento snatch, onde você ergue a barra acima da cabeça. No levantamento terra, ou ‘deadlift’, que consiste em tirar a barra do chão e elevar até a altura da cintura, o menino já chegou a carregar 95 kg. O pai, Carlos Augusto, reforça que essa foi uma sessão categorizada como PR (personal record), na qual o atleta levanta uma “carga máxima” para medir qual é a sua melhor marca e o limite de levantamento. Alguns vídeos erguendo altas cargas viralizaram nas redes sociais, batendo mais de 14 milhões de reproduções em seu perfil.
O desempenho acima da média lhe rendeu o apelido de ‘mini Hulk’, e é dessa forma que Cauzinho se motiva a seguir a vida de atleta no crossfit. Diariamente, os treinos giram em torno de três a quatro horas no box - não é o recomendado, mas ele é acompanhado de perto. Carlos Augusto lembra que o filho tem pesos proporcionais a ele. “Ele compete com os adultos, mas não pega as mesmas cargas. Ele pega um peso proporcional, desafiador para ele. Colocam um peso que desafie ele nas competições. Mas o número de repetições e os movimentos feitos são os mesmos para todos os atletas”, explica.
Desenvolvimento
Segundo Lenilda Pereira, gestora esportiva e fundadora da Federação Baiana de LPO, não existe uma categoria específica para crianças na modalidade. As crianças não podem participar oficialmente de competições do LPO. Portanto, esse público pode apenas fazer apresentações durante os campeonatos, sem o compromisso a disputa por medalha.
A especialista reforça que a idade mínima para começar a fazer o trabalho com peso é aos 8 anos. Antes disso, o indicado é que sejam feitas apenas as técnicas de movimentação, com barras de PVC e sem peso. Já o crossfit não possui uma federação que o represente oficialmente e as regras dependem de cada campeonato.
No crossfit, existem atividades para crianças a partir dos 3 anos de idade, chamado de crossfit pré-escola. Dos 5 aos 12 anos é o crossfit kids, enquanto dos 13 aos 18 anos, o crossfit teens. O ortopedista Marcelo Midlej defende que o ideal, no caso dessa modalidade, é que as crianças passem pelo processo gradativo de todas as categorias, até chegar na modalidade tradicional dos adultos.
“Naturalmente, as crianças já sabem alguns movimentos do crossfit, ela já sabe pular, correr, escalar cordas. A ideia é trazer todas essas atividades para que a criança consiga gerar esse desenvolvimento com carga controlada. Se ela gostar e se desenvolver, ela pode chegar a ser um atleta competitivo. A ideia é não imbuir na criança essa a ideia de competição nesse momento”, completa.
Na visão do especialista em medicina de trauma esportivo do Hospital Português e Mater Dei, Luís Alfredo Gomes, a prática esportiva do crossfit por crianças e adolescentes é bem-vinda, desde que a atividade não exceda os limites do corpo do indivíduo. E cada caso precisa ser avaliado individualmente. O médico aponta que toda atividade física bem conduzida e orientada passa pela supervisão multidisciplinar, desde a parte ortopédica, onde é possível medir níveis da idade óssea do adolescente, até o acompanhamento de profissionais de fisioterapia e nutrição.
Luís Alfredo lembra que antes dos 16 anos o corpo ainda está em um processo de desenvolvimento ósseo e, portanto, se torna mais sensível à lesões que podem permanecer durante toda a vida: “A partir dos 16 anos o indivíduo começa a ter uma maturidade óssea geral mais plena, mais ou menos o que ele carrega para o resto da vida. [...] Mas em alguns ossos e cartilagens, o processo de crescimento é diferente. O fêmur, por exemplo, tem um ritmo de crescimento muito menor do que o úmero, no braço”.
Bruna, Adrian, Alexandre e Cauzinho em treino no CF Oxente (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Carlos Augusto conta que Cauzinho é acompanhado atualmente por uma equipe multidisciplinar, que envolve fisioterapeuta, nutricionista, coach no crossfit e um médico ortopedista. Thiago Barros é o especialista em ortopedia e medicina esportiva que acompanha o garoto em sua carreira como atleta de crossfit. Segundo Thiago, que entende como positiva a participação desse público no esporte, existem dois pontos a serem observados pela equipe multidisciplinar. O primeiro tem a ver com o desenvolvimento físico do atleta. Por isso, é preciso que o próprio atleta tenha consciência e maturidade da sua evolução.
“O crossfit envolve movimentos com pesos e envolve aceleração, movimentos balísticos. Então para uma criança praticar a esse nível [de atleta], ele tem que ter entendimento de todo o processo, ter um grau de maturidade para seguir as instruções. Não pode levar o esporte como se fosse uma brincadeira, porque não é o crossfit kids. Precisamos ter cuidado com as progressões de volume e intensidade no treino para não fazermos acréscimos súbitos em um organismo que está se desenvolvendo”.
O segundo ponto de atenção está ligado ao aspecto nutricional. Barros afirma que atletas que são submetidos a atividade de alta intensidade e não têm o aporte energético adequado, podem ter um balanço energético negativo e causar problemas de crescimento.
“Existe esse medo do retardo crescimento da criança que faz atividade de alta intensidade, mas esse problema de crescimento está associado a problemas de deficiência nutricional. Um déficit energético. Então esse acompanhamento com nutricionista para calcular o balanço energético para que ele não fique com déficit calórico é fundamental para não ter interferência na parte de crescimento dele. Não ter alterações na parte metabólica e hormonal que traga interferência no crescimento dele”, continuou.
Veia de atleta
Para além do desempenho físico, associado ao cuidado com o corpo, há um outro fator que é comum a essa turminha peso pesado do crossfit: a paixão por competir e se desafiar. A carioca Bruna Schwenck (@bruninhaschwenck), de 13 anos, sempre teve a vida associada ao esporte e à competição. É assim que ela e seu pai, Bruno Schwenck, 38, lembram da trajetória da menina que começou na ginástica olímpica e hoje é referência no crossfit aqui em Salvador.
“Tudo começou quando Bruna tinha quatro anos e era uma criança retraída, muito tímida. Em uma das consultas com o pediatra, questionamos o que poderia ajudar ela nisso e indicaram que colocássemos ela em um esporte. Colocamos ela temporariamente no futebol, ballet e ginástica artística. Logo ela desistiu dos dois e a professora disse que ela havia evoluído, tinha consciência corporal, desenvoltura e força. Então sugeriu que fizéssemos uma peneira na equipe de ginástica olímpica do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Foi na equipe mais conhecida no Brasil nessa modalidade que Bruna começou a desenvolver essa veia de competição, já que a academia é reconhecida pela formação de grande atletas, como os irmãos Diego e Daniele Hypólito, Jade Barbosa, e, atualmente, com a campeã olímpica Rebeca Andrade. “Nos mudamos para Salvador quando ela tinha nove anos e aqui não existe uma equipe de ginástica como lá, apenas escolinhas que eram muito simples para o nível dela”, continuou o pai.
Na intenção de mantê-la na ativa, começou a levar Bruna com regularidade para fazer exercícios no Jardim dos Namorados, onde existem alguns aparelhos como barras. Pai e filha lembram que em um dos dias de atividade o treinador da turma da Alcateia Crossfit, Felipe Ribs, viu as movimentações da garota e a convidou para conhecer o trabalho no box do crossfit. De lá para cá, Bruna participou de diversos campeonatos, a nível nacional e mundial, e, assim como Cauzinho, também compete entre os adultos, pulando a categoria teens.
Bruno ressalta que o apego pelo crossfit surgiu de forma natural, assim como na época de ginasta, e que o lado competitivo, muito presente na filha, ajudou na adaptação. Bruna completa: “Eu sempre gostei de fazer esporte. O crossfit foi mais um deles que gostei de fazer e superar os meus limites. Quando estou fazendo esporte, eu libero a minha mente do dia a dia e gosto muito disso”. A menina, em sua ainda curta carreira de atleta, também já praticou esportes como o triathlon, que envolve natação, corrida e bicicleta.
Bruna praticando o snatch ((Foto: Marina Silva/CORREIO)) |
No meio de uma rotina intensa de treinos, ainda é preciso dedicar um tempo aos estudos, claro. O dia a dia de Bruna, na maior parte das vezes, começa às 6h na escola, seguido do treino na academia após o almoço e, na sequência, emenda com o treino no box do crossfit. A estudante conta que, além de aproveitar cada tempo livre para colocar os estudos em dia, utiliza os fins de semana para completar as atividades.
E quem ficou cansado só de ler e imaginar essa rotina, é bom saber que essa turma tem energia de sobra. Cauzinho, mesmo após mais de três horas de treino, diz que chega em casa e ainda tem disposição para ‘pegar um baba’, brincar de pique-esconde com os colegas do prédio onde mora e, em suas palavras, “tirar um tempo para trocar aquela resenha”. Essa vida atarefada e com agenda cheia é comum entre a turma de jovens atletas.
Tempo integral
E se veia competitiva de Bruna Schwenk a acompanhou desde o começo da vida, o cenário é diferente com Alexandre Orge (@alexandreorgee), de 14 anos. Há poucos anos atrás seria difícil imaginar a vida do estudante dentro de um box do crossfit, focado em praticar atividades físicas por horas no mesmo dia. Foi em busca de uma melhor qualidade de vida que o jovem acabou fisgado pela rotina de treinos.
“Ele começou a musculação porque tinha obesidade. Estava bem acima do peso para altura que tinha. Durante a pandemia, eu e meu filho começamos a fazer treinos de corrida e academia quando era possível. Quando a pandemia amenizou, eu comecei o crossfit e ele também. A obesidade foi um marco e fez ele escolher o esporte como um meio de vida”, relembra Ulisses Orge, 41, ao falar do começo do filho no esporte.
Hoje, Ulisses conta que muitas vezes precisa ‘segurar a onda’ de Alexandre quando o assunto é crossfit. “Eu brinco que ele é uma ‘Testemunha do Crossfit’, que passa o dia inteiro falando do assunto. Já tive conversas com ele de que, se não respeitar os combinados e os limites dele, tiro do crossfit. Por mais que ele queira evoluir no esporte, precisa continuar sendo uma fonte de saúde e estabilidade psicológica. E isso só acontece se ele não tiver lesões, não perder o foco nos estudos e tiver um corpo saudável”, afirmou.
Por isso, mesmo que Alexandre já tenha um ano e meio praticando o esporte, Ulisses ainda não permite que ele participe de campeonatos, entendendo que não é 100% seguro o adolescente praticar os exercícios com tamanha intensidade. Enquanto isso, Alexandre segue colocando metas a serem superadas em seus treinos diários na academia do Crossfit SSA. “Meu exercício favorito hoje é o snatch. De uns três meses para cá tive uma evolução muito boa tanto na carga, quanto no movimento de ginástica. A gente vai aumentando a carga e eu coloco metas para mim mesmo, tento colocar metas difíceis para que eu possa superar”, continuou o jovem.
Alexandre praticando o snatch (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Pequeno fisiculturista
Enquanto Cauzinho, Bruna e Alexandre se preparam para executar com perfeição os movimentos do crossfit, o garoto Adrian Araújo, conhecido como Adrian Star (@adrianstar.oficial), mostra força nos braços e pernas com outro objetivo. Aos 11 anos, o mais novo da turma recebe orientações do pai Alexandre Araújo, 34, para manter a pose firme, mostrando a rigidez dos músculos e a definição no corpo. Tudo isso porque o foco do garoto é subir nos palcos dos campeonatos de fisiculturismo e seguir os passos do pai na modalidade.
Há 15 anos trabalhando como atleta e coach de treinamento voltado para o fisiculturismo, Alexandre incentivou as atividades físicas do filho desde os cinco anos de idade, quando iniciou o aprendizado sobre técnicas do LPO e musculação.
“Adrian levou dos cinco aos nove anos treinando essas técnicas para então passarmos a elevar seu nível nas cargas. E ele tem progredido com segurança e, gradualmente, respeitando o limite fisiológico do seu corpo”, explicou Alexandre.
Apesar de ter similaridade nos treinos, como os levantamentos de peso e o trabalho cardiorespiratório, o foco do fisiculturismo, como explica Alexandre, está em desenvolver diversos grupos musculares do corpo do atleta, buscando a já citada simetria e harmonia. Assim como o trio do crossfit, Adrian passa por um acompanhamento integrado que envolve idas periódicas ao ortopedista, pediatra e fisioterapeuta.
Como Lenilda Pereira destacou, Adrian ainda não pode competir oficialmente no LPO. Mas o pai reforça que, no fisiculturismo, o filho já foi reconhecido e acumula troféus em campeonatos e apresentações feitas na Bahia e em Recife. Para isso, Adrian segue uma alimentação balanceada. Alexandre revela que a dieta se tornou mais restrita por vontade própria do filho, que não é uma criança “apaixonada por doces”.
“Não tem porque se preocupar com uma criança deixar de comer doces frequentemente, afinal, ele come doces como toda criança, só não exagerar como muitas fazem de forma desenfreada. As guloseimas são rejeitadas por ele, mesmo podendo. Sua mente já não pede tanto quanto as crianças que vivem comendo deliberadamente”, finalizou.
Adrian praticando as poses do box do CF Oxente (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Fonte: Correio
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